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Este é um espaço reservado para reflexões onde os leitores terão a oportunidade de ler trechos de escritores famos@s (ou nem tanto), acompanhados de um breve comentário e, assim esperamos, provocar em você, leitor, um pensamento capaz de se interrogar a si mesmo. Esperamos assim provocar a auto-observação, a análise e a interpretação das emoções, dos sentimentos, da realidade concreta, enfim... da vida ao seu redor, intervindo nas sociabilidades e na construção das subjetividade e das identidades, tanto a individual quanto as coletivas.

O BRANCO SELVAGEM

 

por Sanny Hosney Mahmoud Mohamed 

 

          Um grupo de turistas fretou um ônibus para visitar os principais pontos turísticos de São Paulo. Chegando em uma reserva indígena, o guia do grupo, um homem alto, magro, usando calças de linho, camisa branca, gravata e sapatos polidos que reluziam ao toque do sol, desceu do ônibus. Atrás dele saíram várias pessoas, cujos traços denunciavam as diferentes etnias. Caucasianos, asiáticos, latinos, europeus e brasileiros de outras regiões derretiam juntos sob o sol escaldante. Todos reunidos, em frente ao ônibus, pararam para ouvir o guia, que mais parecia sufocar com aquela gravata atada ao pescoço, naquele forno a céu aberto.

         Rapidamente, alguns indígenas cercaram o grupo de turistas. O guia não se deixou intimidar e prosseguiu: "- Como vocês podem ver, essa é uma reserva indígena. É aqui que esse povo vive de forma primitiva e selvagem". Um dos jovens 'selvagens' ouvira a definição do homem branco 'civilizado' e perguntou a ele: "-O que faz o homem branco pensar que índio é selvagem", indagou o pele vermelha. "-Ora, basta observar o modo como vocês vivem, em tendas, ocas, sei lá... Vocês caçam animais para comer, não usam roupas, pintam a pele, dançam de forma estranha, não vão à escola, não têm saneamento básico, usam barcos rústicos, o trabalho de vocês não gera renda... enfim, isso é viver como um selvagem", respondeu pretensiosamente o homem branco. "- Só de ver nossa tribo você diz que vivemos como selvagens, mas como vive homem branco?" O engravatadinho encheu o peito e respondeu: "-Ah... não tem nem comparação, somos evoluídos", e prosseguiu, cheio de orgulho, com o seu relato das mil maravilhas sobre a vida na cidade. Falou de carros, festas, praias, cinemas, museus, comidas...

        O índio ficou surpreso e ao mesmo tempo curioso para conhecer essa vida incrível que lhe estava sendo apresentada, pois as únicas informações que tinha sobre a vida na cidade tinham sido trazidas por um pesquisador e professor que lhe ensinara a falar português (ainda que tivesse algumas dificuldades com o idioma 'estrangeiro'). Pensando se poderia existir um lugar melhor e mais incrível do que aquele que a sua tribo vivia, o nativo pediu permissão ao cacique para conhecer a esplendorosa vida na cidade. Aceita a proposta do jovem índio, de passar um dia na cidade, o homem branco 'civilizado' partiu com o 'selvagem'.

        Após deixar os turistas no hotel, o guia pegou seu carro particular e disse ao índio que o levaria para conhecer a sua maravilhosa cidade, mas antes entregou a ele um par de calças e uma camiseta, pois ele não poderia andar desnudo pelas ruas. O índio concordou, afinal não estava em sua tribo e tinha de respeitar as regras da cidade grande. Após alguns minutos dentro daquele forno (agora fechado) com quatro rodas, ambos derretiam. O trânsito, como de costume, estava carregado e, temendo perder tempo, o guia disse ao pele vermelha que iriam de metrô. Deixando o carro em um estacionamento, eles partiram para a estação. Pretendia levar o índio ao museu, teatro, restaurante... para mostrar a ele como os brancos eram civilizados.

        Desceram na Praça da Sé e foram até a Catedral. "-Eis um grande monumento, que simboliza a nossa  religiosidade!". O 'selvagem' não ligou muito para as suas palavras, pois sua atenção estava voltada para as pessoas ao redor da Catedral. Elas pediam esmola, estavam maltrapilhas e eram afugentadas por outras pessoas que saíam da igreja. "-Por que ninguém ajuda essas pessoas? Elas dorme na rua e não têm nada pra comer...", disse o índio. "-Ora (começou o guia) existem programas do governo... é que elas não querem ir para os abrigos e preferem ficar aqui", respondeu o guia (nem ele acreditou no que disse). Um tanto intrigado, o índio assentiu com a cabeça e partiram para o Museu de Arte de São Paulo - MASP.

        Por um problema em uma das linhas coloridas do metrô, eles desceram na estação Brigadeiro e foram caminhando até o museu. Logo na Av. Paulista um grupo imenso de manifestantes se reuniram em passeata por reivindicações. O pele vermelha, que sabia ler, observava as inscrições nos cartazes:  "O Brasil precisa de escolas e não de estádios!", "O sistema de saúde está doente!", "Basta de corrupção!", "Diga não ao desmatamento!", "Protejam os animais!", "Queremos moradia!", "Reforma agrária já!", "Precisamos de mais empregos e salários dignos!", "Pena de morte aos pedófilos!", "Lutamos pela diminuição da maioridade penal!", "Precisamos de mais transportes públicos!"... O 'selvagem' perguntou ao seu mais novo amigo: "Todos esses problemas é só aqui na parte bonita da cidade, ou na parte feia também tem?". O guia quase engasgou com a própria saliva e enquanto se preparava para responder uma bomba explodiu ao seu lado. Ele puxou rapidamente o braço do índio e correram até faltar-lhes o ar. Ofegante, o nativo questionou a atitude do amigo: "-Se vocês têm a polícia, por que não chama ela pra ajudar as pessoas?". Seu amigo, que mal podia falar, suspirou profundamente, tragou o ar (cheio de poluição) para os pulmões e falou com voz trêmula: "Foi a polícia quem jogou a bomba". Mais uma vez o jovem índio ficou intrigado.

       Assim, voltaram para a estação de metrô, já que as ruas estavam em plena 'guerra civil' e buscariam, em seguida, um restaurante. Logo que adentraram na estação, uma multidão de gente estava aglomerada e sufocada em meio a uma acirrada disputa para ver quem entraria no vagão. O índio estava com o semblante assustado. Ficaram pelo menos uns trinta minutos até alcançarem a porta e, ainda assim, foram até seu destino esmagados. No metrô, em horário de pico, algumas leis da física e da biologia são nulas. Lá, dois corpos podem ocupar o mesmo espaço; a inércia não funciona (é impossível alguém cair dentro do vagão, mesmo que não se segure em nada); todos respiram gás carbônico, porque não há oxigênio para todos dentro daquela lata de sardinha (aliás, na lata de sardinha ainda sobra espaço para o azeite que vem com o peixe).

        Após essa sufocante viagem, eles desceram próximo ao ponto de partida. Caminharam em busca de um restaurante, pois já passava das 18h, e durante o trajeto se depararam com um grupo festejando em plena rua, ao redor de um carro, com bebidas e cigarros, ao som de uma música, cuja letra era ininteligível até mesmo para o homem branco civilizado. Algumas garotas adolescentes, com o rosto pintado grotescamente, dançavam de forma rara e despudorada com diminutas roupas. Os dois amigos se entreolharam e o jovem nativo, de terras que agora pareciam distantes, interrogou seu parceiro de fuga. "-O que eles estão fazendo?" Após um momento de silêncio, o nativo de terras estranhas, ou seja, o homem branco respondeu: "- Estão dançando". Nem mesmo ele acreditara no que estava diante de seus olhos.

        Chegando a um restaurante simples, mas apresentável, sentaram-se e pediram algo para comer como peixe, salada de folhas, vegetais, sucos de frutas... Ao chegar a conta, o índio ficou horrorizado com o valor que seu amigo pagara por uma única refeição que fizeram durante todo um dia. Mas essa era a vida glamourosa da cidade grande. Terminado o jantar, foram às pressas para o estacionamento, onde o guia havia deixado seu carro. Finalmente, iriam para casa e relaxar com uma ducha quente e deixar todos os problemas do dia para trás. Na porta do estacionamento, uma viatura de polícia estava parada e o funcionário relatando o que tinha acontecido. Alguns dos carros dos clientes tinham sido roubados, inclusive o do nosso amigo que, agora, iria caminhando para casa. Indignado com seu dia de 'cão' e envergonhado, humilhado diante de seu recém amigo de viagem, o homem branco soltava fogo pelo nariz...

        Então, o pele vermelha aproximou-se de seu parceiro, eles se entreolharam e o índio 'selvagem' abraçou-o e disse: "-Se homem branco civilizado quer viver com índios selvagem não tem problema. Lá, não precisamos trabalhar para ajuntar dinheiro, todos têm suas tarefas e partilhamos tudo que conseguimos. Não precisamos trabalhar e ganhar dinheiro para comprar o que natureza dá de graça: peixes, verduras, frutas, plantas, remédios, água... é tudo de graça, só precisamos cuidar da natureza que ela dá tudo pra homem selvagem. Não machucamos os animais, só caçamos para comer e o que a gente não come, não caça. Temos casa e, quando precisamos, usamos barcos para atravessar o rio. Não temos carro, mas temos pernas forte. Temos festas também... Lá na tribo, nós aprendemos muito, os mais sábios ensinam os mais jovens, e tudo o que aprendemos passamos para as futuras gerações". Diante dessa declaração, o guia, que se sentia o branco selvagem, chorava aos soluços no ombro do índio civilizado.

 

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